O Soldado Que Encarou o Frio e a Morte Sem Medo
Ricarte da Costa Pestana, um jovem baiano de 22 anos, vivia uma vida tranquila trabalhando na fazenda de seu pai em Nazaré, no Recôncavo Baiano, até que o destino o levou à guerra. Em 1942, o Brasil, após uma série de ataques a navios mercantes por submarinos alemães e italianos, se viu forçado a entrar no conflito global. “Eu não sabia o que me aguardava, mas aceitei o chamado sem pestanejar”, relembrou Ricarte em uma entrevista décadas depois. Ele foi um dos milhares de brasileiros que, em 1944, embarcaram rumo à Itália como parte da Força Expedicionária Brasileira (FEB).
A viagem para a Itália foi marcada por disciplina e preparação. “A organização dos americanos era impecável, não nos faltava nada”, recordou ele. No entanto, a realidade que os aguardava no campo de batalha era implacável. Ao chegarem em Nápoles, foram imediatamente deslocados para o norte, onde enfrentariam os nazistas nas montanhas italianas. Ricarte foi treinado como metralhador, acreditando que estaria na retaguarda, mas logo descobriu que, no exército americano, a metralhadora era uma das primeiras armas a entrar em combate. “Eu pensei: ‘Que erro cometi!’ Mas não havia como voltar atrás”.
O cenário que Ricarte enfrentou na Itália era desolador. As batalhas eram brutais e o frio era quase insuportável. As temperaturas chegaram a 18 graus abaixo de zero durante a campanha em Monte Castello, onde a FEB enfrentou suas maiores provações. “Dormíamos na neve, em sacos de dormir forrados com penas de galinha. Não sentíamos o frio, mas o cansaço e a fome eram constantes”, relembrou Ricarte. A dificuldade em obter comida durante os combates prolongados era uma realidade que muitos soldados enfrentavam. “Em um momento de desespero, um colega encontrou ovos de galinha e os comemos crus, de tão famintos que estávamos”.
A primeira batalha em Monte Castello, em novembro de 1944, foi um desastre para as tropas brasileiras. Os alemães estavam fortemente entrincheirados e resistiram ferozmente. “Eu nunca tinha visto combate antes. Aquela foi minha iniciação, meu batismo de fogo”, contou Ricarte. O terreno era traiçoeiro e o pelotão de Ricarte acabou cercado pelos nazistas. O sargento Armando, percebendo a situação crítica, decidiu enviar alguém para buscar ajuda. “Fui o escolhido. Não hesitei. Saí sozinho, com granadas e uma metralhadora de mão, correndo pela colina sob o fogo inimigo”.
A coragem de Ricarte o fez atravessar as linhas inimigas e levar a mensagem ao comando brasileiro. “Eu não sentia medo. A única coisa que importava era salvar meus companheiros”, disse ele, relembrando o momento em que arriscou a vida para que outros pudessem sobreviver. A ação de Ricarte naquela noite foi decisiva para o salvamento de seu pelotão. Essa coragem, demonstrada repetidamente, é o que distingue os veteranos como ele, que enfrentaram não apenas os horrores da guerra, mas também as adversidades extremas do ambiente em que lutaram.
Ricarte e seus companheiros passaram meses enfrentando o frio, a fome e os ataques incessantes dos alemães. Monte Castello foi finalmente tomado em fevereiro de 1945, após três meses de intensas batalhas. “O frio e o cansaço eram quase insuportáveis, mas o desejo de vencer era maior”, comentou Ricarte. Para os brasileiros, aquela vitória foi uma das mais significativas da guerra. “Ver a bandeira brasileira hasteada no topo daquela montanha foi indescritível”, disse ele.
O sacrifício dos soldados da FEB não foi em vão. Dos 25.833 brasileiros que lutaram na Itália, 471 nunca voltaram. Ricarte sobreviveu, mas as cicatrizes emocionais permaneceram. “Eu perdi muitos amigos. A guerra nos marca para sempre”, refletiu ele. Após o fim da guerra, Ricarte retornou ao Brasil, trazendo consigo memórias de coragem, sacrifício e resiliência que nunca o abandonariam.
Ricarte da Costa Pestana faleceu em 26 de junho de 2024, aos 102 anos. Sua vida, marcada pela bravura e pela luta por liberdade, serve como um lembrete do impacto duradouro da Segunda Guerra Mundial naqueles que enfrentaram seus horrores. “Dormi em cima de mortos, vi meus amigos caírem ao meu lado, mas nunca tive medo. Sabia que estava lutando por algo maior”, foram algumas de suas últimas palavras sobre o conflito que mudou sua vida e a história do mundo.
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