O Chão Minado: Um Relato Brutal

Em 8 de março de 1945, nas encostas das montanhas italianas, onde as forças brasileiras haviam avançado no dia anterior, um cenário de tensão e incerteza se desenhava. Ali, em meio à névoa da guerra, um pracinha guiava um oficial em direção a corpos de soldados alemães que haviam caído nos combates. Mas o perigo à frente não estava apenas nas balas inimigas ou nos fragmentos de artilharia; ele também se ocultava sob seus pés, nas minas que faziam o solo tremer.

A caminhada, que parecia simples, logo se transformou em uma travessia pela própria sombra da morte. O pracinha, um jovem de origem simples, hesitou por um momento. “- Esqueceu o caminho?” perguntou o oficial. “- Não senhor, mas eu acho que por aqui não se pode ir. Eu da outra vez vim de lá do alto do morro…”. O soldado olhava para o chão, e com razão. O campo poderia estar minado. Não havia uma trilha clara ou demarcação precisa para evitar o perigo. “Já tiraram minas aqui?”, perguntou o oficial, e a resposta incerta trouxe ainda mais tensão à jornada.

Os soldados sabiam que, naquele terreno acidentado, a morte poderia estar logo abaixo deles. O medo de pisar em uma mina transformava cada passo em um desafio mental e físico. O oficial descreveu o sentimento como “andar descalço num capinzal cheio de cobras venenosas”. A ameaça invisível de uma explosão iminente pairava sobre eles. O trabalho dos mineiros não havia sido conclusivo; apenas algumas áreas haviam sido parcialmente limpas, deixando grandes trechos sem segurança. A única opção era seguir, com extremo cuidado, colocando os pés nas mesmas pegadas deixadas pelo outro.

Enquanto caminhavam lentamente, a tensão aumentava. O oficial não pôde deixar de refletir que se o pracinha pisasse em uma mina, ambos seriam vítimas da explosão. A proximidade deles não permitia outra conclusão. Ainda assim, seguir em frente parecia menos perigoso do que voltar. A lógica fria da guerra ditava que a escolha era entre o medo contínuo ou a ação impetuosa.

Quando o pracinha, em um momento de dúvida, sugeriu voltar e procurar outro caminho, o oficial percebeu a contradição nos olhos de seu companheiro. Havia uma resistência interna, uma recusa em ceder ao medo. Sem palavras, ambos seguiram em frente, aceitando que estavam dispostos a enfrentar o pior, desde que pudessem sair daquela situação agonizante.

O terreno que atravessavam era desolador. Restos de equipamentos, cartucheiras e fragmentos de papel indicavam que aquele local havia sido palco de batalhas ferozes. A cada passo, o peso da incerteza aumentava, mas logo encontraram uma pequena valeta que os fez parar. Do outro lado, um campo arado há muito tempo, mas sob o qual algo suspeito se escondia. As cicatrizes da guerra estavam por toda parte. Objetos enterrados sob a terra, pequenos detalhes que podiam indicar minas, faziam com que cada decisão fosse tomada com extremo cuidado.

O silêncio era interrompido apenas pelos pensamentos do oficial, que recordou-se de uma fotografia de Santos Dumont, o inventor brasileiro, e de suas asas mecânicas. Ele imaginou como seria útil poder flutuar acima do solo, apenas um centímetro acima do perigo. Naquele momento, o chão parecia mais traiçoeiro do que qualquer outro obstáculo que já tivessem enfrentado. Cada pedaço de terra poderia conter uma armadilha mortal.

Após alguns minutos de cautela, avistaram o primeiro corpo. Um soldado alemão, provavelmente morto por uma granada em sua posição. O corpo estava semi-congelado, preservado pelo frio, mas já começava a mostrar sinais de decomposição. O capacete ainda cobria parte da cabeça, mas a face já estava parcialmente descarnada. Mais à frente, outros dois corpos estavam em um buraco que parecia ser uma posição de morteiro. Um deles tinha a mão descarnada, com os ossos brancos destacando-se contra o uniforme sujo de terra.

Esses corpos eram testemunhas silenciosas da brutalidade da guerra. Jogados no solo, seus restos contavam uma história de morte e desolação. O pracinha e o oficial tiraram algumas fotos e começaram a retornar pelo caminho que o soldado conhecia. Não havia vitória naquele momento, apenas o cansaço da sobrevivência.

O oficial, em suas reflexões, via além daqueles corpos. “São milhões de criaturas humanas e todas estão debaixo da terra. Cuidado, caminhantes do futuro. Pisai com muito cuidado, esses corpos são minas, são terríveis minas de tempo.” A guerra não apenas enterrava corpos em cemitérios, mas também legava cicatrizes profundas no solo e na memória. Milhões de homens e mulheres, de todas as raças e nacionalidades, estavam sepultados em campos de batalha pelo mundo.

O chão, que deveria ser símbolo de vida e estabilidade, havia sido transformado pela guerra em um campo minado, literal e figurativamente. O oficial conclui com uma reflexão poderosa: “Os homens precisam de chão livre, para andar. E é uma grande e solene coisa: andar.” A liberdade de caminhar, sem o medo constante da morte, parecia um sonho distante naquele campo devastado pela guerra.

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